quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Distensão Estados Unidos versus Cuba

Nesta data de 17 de dezembro de 2014, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, e Raul Castro, ditador de Cuba, anunciaram o reatamento das relações diplomáticas entre seus países. Passados 55 anos do rompimento causado pelo triunfo do comunismo na ilha caribenha, com as ascensão de Fidel Castro, em substituição a Fulgêncio Batista, ocorre o restabelecimento da normalidade nas interações dos dois governos.
Afora Cuba ter-se constituído em ponta de lança da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nas proximidades dos Estados Unidos, há que se mencionar que os americanos tentaram em 1961, a derrubada do regime da ditadura castrista por intermédio da frustrada invasão militar da Baía dos Porcos, na costa sul da ilha cubana.

A Invasão da Baía dos Porcos — conhecida em Cuba como La Batalla de Girón, uma vez que a operação principal ocorreu na praia de Girón, localizada na Baía dos Porcos —foi planejada durante o mandato do presidente americano Dwight Eisenhower e executada em 1961, logo após a posse do presidente John Kennedy que substituíra Eisenhower. O evento fazia parte da Operação Mangusto, cujo objetivo era derrubar o regime recém instalado em Cuba, bem como assassinar seu líder Fidel Castro. A força invasora era constituída por cerca de 1300 cubanos exilados nos Estados Unidos e que foram treinados pela CIA. Entre as baixas das operações podem ser contabilizadas: (i) forças invasoras: 118 mortos, 360 feridos e 1 202 capturados; (ii) Exército cubano: 176 mortos e 500 feridos; (iii) Polícia e milícia cubanas: cerca de 4000 mortos, feridos ou desaparecidos.

Há que relembrar também a tentativa da União Soviética de instalação, em 1962, de mísseis nucleares em Cuba — que resultou na mais severa crise entre as duas superpotências, com risco iminente de conflito nuclear. Depois de negociações dificílimas, o presidente americano John Kenedy e o primeiro ministro soviético Nikita Kruschev, chegaram a um acordo mediante a retirada de armas estratégicas americanas da Turquia e da retirada dos mísseis nucleares soviéticos de Cuba.

A crise entre EUA e URSS foi motivada pela instalação de mísseis estratégicos americanos no Reino Unido, na Itália e na Turquia, bem como pela tentativa de invasão de Cuba pelos exilados cubanos apoiados pelos Estados Unidos. A União Soviética instalou cerca de 40 silos com mísseis nucleares em Cuba, localizada a 150 quilômetros da costa americana, o que era inaceitável pelo governo americano. Durante 13 dias, o mundo viveu sob a ameaça de uma hecatombe nuclear, com o embargo militar naval de Cuba, para evitar que tropas, armamentos e navios soviéticos aportassem na ilha. O ápice da crise caracterizou-se pela derrubada de um avião espião americano U2 sobre Cuba e a morte do respectivo piloto. As tensas negociações foram encerradas, e a crise superada, com o urgente comunicado de Nikita Kruschev que asseverava: "Nós concordamos em retirar de Cuba os meios que consideram ofensivos. Concordamos em fazer isto e declarar na ONU este compromisso. Seus representantes farão uma declaração de que os EUA, considerando a inquietação e preocupação do Estado soviético, retirarão seus meios análogos da Turquia".

Aspectos fundamentais do anúncio de Obama e Castro devem ser objeto de escrutínio hoje e durante os próximos anos.
Há analistas que consideram o Governo Obama fraco. No âmbito interno, nas recentes eleições legislativas federais e executivas estaduais de 2014, o partido Democrata de Obama sofreu acachapante derrota, com a perda de maioria no Senado — que veio a se somar à pré-existente maioria republicana na Câmara de Deputados. No cenário internacional, o Governo americano estaria agindo com pusilanimidade frente à Síria, cujo ditador, Bashar Assad, contribuiu para a morte de mais de 100 000 sírios. Os americanos não estariam agido com a firmeza e decisão satisfatórias frente aos russos no episódio da tomada da Crimeia dos ucranianos pelo Governo russo de Vladimir Putin e do apoio político e militar dos russos para os combatentes que tentam estabelecer-se no Leste da Ucrânia, em oposição ao governo ucraniano, cuja tendência é tentar livrar-se das pressões e influências russas e aderir à União Europeia e OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte). Nesse sentido, a abertura patrocinada com o Governo cubano representaria uma tentativa de salvação de um Governo que tem sido tão duramente contestado.
Olhando a questão do prisma do Governo de Cuba, questiona-se as razões pelas quais os americanos estejam fazendo a distensão com uma ditadura, na qual durante meio século, Fidel Castro atuou de forma despótica, sem a menor concessão para as liberdades em geral — com ênfase para as liberdades de ir e vir, econômica e de expressão —; para os direitos humanos e das minorias; e, em síntese, para o estado democrático de direito e outros temas caros à democracia e sobretudo à liberal-democracia. Recentemente, Fidel Castro foi substituído por seu irmão Raul Castro, que deu continuidade ao processo vigente, com tímidos acenos para alguma evolução aspirada interna e externamente. A pergunta que hesita em calar: por que legitimar um regime tão distante da essência da verdade, liberdade, democracia e justiça?
No atinente ao poder mundial, é oportuno mencionar que mercê da possível fraqueza  do Governo Obama — uma continuidade do igualmente medíocre Governo Bush — os Estados Unidos assistem a uma aparente e relativa perda, com a ascensão meteórica da China, agora possivelmente consolidada, se não acelerada, pelo investidura recente de Xi Jinping como líder chinês. É conveniente citar o emblemático comentário publicado no People’s Daily, porta voz do Partido Comunista chinês: “Mao Tse Tung colocou a China de pé; Deng Xiaoping tornou rico o povo chinês; Xi Jinping fará o povo chinês forte”. Curiosamente, a ascensão chinesa justifica a détente cubano-americana, dado que fecha-se a porta para uma maior influência chinesa em Cuba e, de quebra — ao neutralizar uma parcela da influência de Cuba na América Latina, especialmente, na Venezuela, no Equador e na Bolívia —, reduz-se o potencial de influência chinesa nesses países.
Não há como deixar de considerar a questão conjuntural do petróleo. A Arábia Saudita decidiu aumentar a produção do petróleo, reduzindo expressivamente o preço do barril no mercado mundial — de US$ 110,00 para US$ 60,00. Como uma única tacada, os sauditas impõem severa limitação política, econômica e estratégica ao Irã, na permanente e proverbial tentativa de supremacia no Oriente Médio e, especialmente, na não admitida marcha para a obtenção do poderio nuclear; prejudicam expressivamente a economia da Rússia, pela inequívoca dependência russa da exportação de derivados do petróleo; e dificultam ainda mais a combalida economia da Venezuela. Por outro lado, a trajetória para a total independência energética dos Estados Unidos por intermédio da obtenção de energia oriunda do xisto em substituição ao petróleo é desacelerada, uma vez que os capitalistas americanos reduzirão os investimentos nesse empreendimento em face da redução da relação benefício-custo causada pelos baixos preços do petróleo. Já a China, que tem grande dependência do petróleo do Oriente Médio, é fortalecida pela grande queda dos preços desse insumo crítico do crescimento chinês. Conquanto seja óbvia a identificação de vencidos e vencedores do xadrez do petróleo, no que concerne aos Estados Unidos, do ponto de vista estratégico, há uma faixa cinzenta, cujas consequências são de difícil previsibilidade; não há como ignorar a evolução chinesa. É certo asseverar entretanto que a distensão com Cuba torna-se mais desejável, se impede uma maior atuação chinesa no continente americano.

Enfim, a validação de um regime despótico tem vantagens e desvantagens. Os analistas de plantão estão eufóricos, especialmente, aqueles simpáticos ao regime vigente em Cuba. O presidente Barack Obama cria um factoide universal para compensar a pobreza de sua Administração. Cuba consegue a certificação de seu maior adversário para a ausência de verdade, liberdade, democracia e justiça de seu governo. Os governos sul-americanos  patrocinadores do Foro de São Paulo expressam ambiguidade em seus comunicados: de um lado expressam aprovação para o Governo de Cuba; de outro, perdem uma plataforma de argumentos para seus objetivos políticos, econômicos e de toda ordem — afinal, até Cuba aderiu à superpotência dominante e combatida. Alguns acham que o regime cubano caminhará para uma inevitável abertura. Vale a pena pagar para ver e aguardar.
As alternativas mais prováveis são:
— uma democracia nos moldes ocidentais;
— algo parecido com o regime chinês, onde o nome comunismo prevalece concomitantemente com um inequívoco capitalismo de estado; ou
— algo que prevalece na Rússia — uma propalada democracia no bojo de autocracia, com uma histórica dependência de líder e não de instituições.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Práxis política

Uma Deputada Federal chamou outro parlamentar de estuprador. Este respondeu que ela não mereceria ser estuprada por ele. Isso ocorreu de forma pública diante das câmeras de televisão. Os factóides geraram grande reação da mídia escrita e no âmbito das redes sociais.
Só não vi alguma análise que desse conta de que ela ao tentar ofendê-lo sabia que haveria a contrapartida no mesmo teor, que a discussão teria ampla repercussão e que isso lhe daria dezenas de milhares de votos adicionais na próxima eleição. Ele, por sua vez, não perdeu a oportunidade de revidar e fê-lo com veemência tal que ultrapassou qualquer previsão. Com isso, ele sabia das consequências e mais, sabia que na próxima eleição receberia dezenas de milhares de votos adicionais.
Enfim, esse é o padrão de políticos que o Brasil dispõe. Esses são os eleitores que elegem uma parcela de nossos representantes.
Dúvida? É só lembrar que nas recentes eleições do segundo semestre de 2014, a mentira prevaleceu como forma de convencimento eleitoral. Passados menos de dois meses da eleição presidencial, constata-se que o que fora prometido, anunciado, não passava de mentira grosseira e já caiu no esquecimento. Basta examinar as questões de política econômica, de combate à corrupção, de gestão da saúde, educação e segurança pública.

Novidade? Não! Basta lembrar a carta que um general romano enviou para Cícero, seu irmão, senador, aconselhando-o sobre o modus operandi para o sucesso na política — com ênfase para o disfarce, o engodo para a conquista de adesão. A História ensina que há mais de dois mil anos, os políticos já agiam em consonância com o que vemos na atualidade no Brasil.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Autonomia tecnológica e estratégica


A concepção e implementação ou a transformação de qualquer sistema de ciência & tecnologia pode, e talvez deve, levar em conta condicionantes históricas, científico-tecnológicas e estratégicas. Neste texto, sem preocupação com a estruturação adequada e com embasamento conceitual, tento abordar essas condicionantes.
A autonomia tecnológica e estratégica é essencial para qualquer força armada e para o país que a abriga. Como origem ou corolário dessa autonomia, na história da Humanidade, não há vitórias militares relevantes com armamentos concebidos, projetados e construídos no exterior. Um brilhante aluno da ECEME se contrapôs a essa assertiva citando-me as vitórias norte-vietnamitas e israelenses. Asseverei-lhe que não foram as armas que deram a vitória aos vietcongues, mas a vontade daquele povo, estimulada por um militar estadista, o General Giap. Afirmei também que os israelenses usaram carros de combate e aeronaves compradas no mercado externo, mas instrumentalizadas com a aviônica e demais controladores e sensores — isto é, toda a inteligência dos sistemas bélicos — concebidos e produzidos pelos cérebros locais. Isso sem esquecer o que afirmara Ben Gurion, nos primórdios do Estado judeu, em tradução livre e descompromissada com a precisão: “Somos poucos, em um pequeno território, mas temos os melhores cérebros!”. E incontinenti, determinou a escolha de alguns dos mais talentosos jovens da área de física e engenharia para fazer doutorado em consagradas universidades europeias e americanas, voltar a Israel e estabelecer as fundações do que se conhece hoje como uma excepcional condição tecnológica e estratégica daquele Estado.
Como ilustração da autonomia nas duas vertentes fundamentais, vale a pena lembrar outros exemplos díspares, mas emblemáticos, envolvendo os Estados Unidos, Rússia, França,  China, África do Sul, Paquistão, Coréia do Norte e Irã. Os exemplos aqui citados estão apoiados na pesquisa e autonomia nuclear, permeada de dificuldades científico-tecnológicas, políticas e econômicas, a tal ponto que o Brasil renunciou ao desenvolvimento de armamento atômico. Entretanto, o conhecimento da evolução das conquistas nucleares pode ser considerado exemplar e serve de referência para outras áreas com menos sensibilidade e barreiras internacionais.
Os Estados Unidos produziram e testaram a primeira bomba atômica em Los Alamos, em 1945, no âmbito do Projeto Manhatan, reunindo alguns dos maiores cientistas de todos os tempos, oriundos de vários países — dentre os 24 cientistas mais relevantes, 11 eram americanos e 13 eram europeus. Entre eles podem ser mencionados: o italiano Enrico Fermi; os húngaros Leo Szilard, John von Neumann e Edward Teller; o dinamarquês Niels Bohr (com pequena mas importante participação, já que pode ser considerado, depois de Einstein, o mais notável cientista do século XX); todos reunidos sob a inexcedível liderança do americano Robert Openheimer (que mais tarde, fora muito contestado, entre outras coisas, por ser ligado a socialistas e comunistas). Ademais, o êxito americano resultou da contribuição de cerca de dezenas de centros de pesquisa tecnológica ou universidades.
A União Soviética construiu e testou sua primeira bomba atômica em 1949, após replicar, na localidade de Mayak, próximo dos montes Urais, a infraestrutura americana do Projeto Manhatan (com cerca de 40 000 profissionais soviéticos, do servente de pedreiro ao engenheiro, envolvidos somente na construção civil); e tendo obtido o projeto completo da primeira bomba atômica americana, que lhes foi repassado por Klaus Fuchs, cientista britânico, nascido na Alemanha, que trabalhou em Los Alamos e atuou como espião soviético. O primeiro artefato nuclear soviético foi chamado RDS-1 (Reaktivnyi Dvigatel Stalina-1, ou Motor Foguete de Stalin-1), pesquisado e construído no Instituto para Pesquisa Científica para Física Experimental, conhecido como Arzamas-16, localizado na cidade secreta de Sarov, na região de Mayak, sob a liderança do cientista Yuliy Borisovich Khariton; e sob a supervisão de Lavrenti Beria, cuja determinação era fuzilar o cientista se o teste não funcionasse. Khariton fez seus estudos acadêmicos na União Soviética, fez pós-graduação em Cambridge e ao retornar a Moscou, em 1931, com a idade de vinte e sete anos, recebeu a incumbência de organizar o Laboratório de Explosivos no âmbito do Instituto de Física e Química. Ele acompanhou com perspicácia a descoberta, em 1939, da fissão nuclear pelos alemães Hahn, Strassman e Lisa Meitner; e os experimentos do casal Joliot-Curie, franceses que receberam prêmio Nobel por pesquisas na área nuclear.
Passando para o exemplo francês, é oportuno lembrar que após o término da Segunda Guerra Mundial, De Gaulle cobrou de Truman o apoio para o desenvolvimento científico-tecnológico e militar francês, em contrapartida acertada com o falecido presidente Roosevelt pelo apoio francês, em cientistas nucleares, que saíram da França por ocasião da invasão nazista. Nessa época, De Gaulle queria apoio para submarino e para a área nuclear. Truman fez-se de desentendido, asseverando que não havia qualquer acordo formal nesse sentido. De Gaulle tomou a decisão de implementar programas autônomos. Daí, resultaram as indústrias de carros de combate, de aeronaves bélicas, de submarinos e de armas nucleares, como hoje as conhecemos — ressalte-se que os franceses explodiram a bomba de fissão nuclear, chamada Gerboise Bleue, em Reggane/Argélia, em 1960 e a bomba de fusão nuclear, no atol de Fangataufa, no Pacífico, em 1968). É conveniente não esquecer que os americanos negaram apoio nuclear também para Israel. Por razões comuns, e também distintas, ocorreu a cooperação nuclear franco-israelense, a tal ponto que, por ocasião do teste nuclear com a Gerboise Bleue, afirmou-se que com uma única explosão, duas nações tornaram-se nucleares: França e Israel. Fontes não oficiais declaram que, na atualidade, Israel dispõe de arsenal atômico com mais de 100 bombas.
Mao Tse Tung triunfou na China em 1949 e foi a Moscou pedir apoio a Stalin. Tomou chá de cadeira durante quase uma semana. Foi recebido e ganhou a promessa de assistência militar, educacional e científico-tecnológica. Inicialmente, essa promessa foi cumprida e um extenso programa de cooperação foi estabelecido — até mesmo uma bomba atômica foi prevista no apoio para que os chineses pudessem ter dados para seu próprio projeto nuclear. No final da década de 1950, Kruschev encerrou o programa de cooperação, nos termos em que fora implementado, naturalmente com ênfase na negação do apoio nuclear. E o que fizeram os chineses? Sorriram! Na área científico-tecnológica para fins militares, eles montaram um programa espelho secreto, no qual tudo o que era feito em parceria com os soviéticos, era reproduzido no programa paralelo. Disso resultou, por exemplo, a primeira bomba atômica chinesa, que foi denominada “596” — número que se tornou emblema da honra e vergonha chinesas, uma vez que a negativa do líder soviético fora feita em junho de 1959 (59/6).  A China construiu seu primeiro artefato atômico por essas razões, mas também porque obteve o projeto do mesmo espião que o entregou para a União Soviética (depois de ser preso na Inglaterra durante mais de dez anos pelos malfeitos como espião, ele foi morar na antiga Alemanha Oriental e ao ser contatado pelos chineses entregou-lhes o projeto); e também com alguma colaboração francesa, já que o líder do projeto chinês, cientista Qian Sanqiang, trabalhou 11 anos na França com os renomados cientistas Frédéric e Irène Joliot-Curie (ele, membro do Partido Comunista Francês e demitido da liderança do projeto nuclear francês em 1950) e, ao retornar à China, recebeu de Mao Tse Tung a incumbência de manter a ligação com o casal Curie. Foi por essa época que os chineses lançaram as oito prioridades estratégicas de Ciência e Tecnologia, cujo objetivo era torná-los uma das potências dominantes 100 anos depois, ou seja, em 2050 — parece que vai acontecer antes! Sem querer ser exaustivo, convém lembrar que, das cinco potências que dispõem das bombas A e H, a China foi a que menos tempo levou para passar da explosão da bomba de plutônio para a de hidrogênio — a primeira foi testada em 1964 e a termonuclear em 1967.
No que concerne à África do Sul, a política do apartheid ocasionou rigoroso embargo internacional àquele país. Então, os sul-africanos não hesitaram e desencadearam processos científico-tecnológicos autônomos. O CSIR (Council for Scientific and Industrial Research) é um exemplo extremamente revelador. Centraliza a maior parte da pesquisa & desenvolvimento civil e militar da África do Sul e tem avanços surpreendentes para o inequivocamente problemático país. Como o maior embargo internacional, direcionado para qualquer longitude ou latitude, pode estar na área nuclear, vale a pena relatar que os sul-africanos produziram seis bombas atômicas. Esse fato é pouco divulgado, mas em 1993, antes de passar o poder para Mandela, o presidente De Klerk anunciou, em sessão secreta do Parlamento, a interrupção do programa nuclear e a desmontagem e, supostamente, o reaproveitamento em atividades industriais ou a destruição do material nuclear. Obviamente, a inequívoca autonomia sul-africana foi reduzida expressivamente após a ascensão de Mandela, com a consequente abertura para o exterior e as pressões e influências resultantes do poder econômico, científico-tecnológico e político internacional.
A Coréia do Norte e o Irã — este ainda não tem a bomba atômica, mas tem uma ampla infraestrutura nuclear, com o objetivo inarredável de construí-la — receberam ajuda da China.
Por intermédio de A. Q. Khan, o Paquistão obteve tecnologia nuclear europeia de forma ilícita, quando por vários anos esse cientista trabalhou em projetos nucleares europeus; contou com engenheiros nucleares da África do Sul, disponíveis após a interrupção do projeto nuclear sul-africano; e também recebeu ajuda da China.
Às questões de desenvolvimento nuclear, ao contexto em que ele historicamente ocorreu nos diversos países com êxito nesse tipo de empreitada, agregue-se a condição de beligerante de todos os países que se tornaram detentores de armas nucleares. Fundamental é refletir que, conquanto as conquistas dependam do exterior, as vitórias científico-tecnológicas, industriais e estratégicas nesse campo são individuais de cada nação.
Em face da recorrente citação de armas nucleares nessas notas, devo ressaltar que não considero primordial produzir bomba atômica. A Alemanha e o Japão não a produzem. Entretanto, a autonomia pode ser buscada nas tecnologias correlatas e na pesquisa & desenvolvimento de vetores de outras áreas, como o fazem de forma magistral os alemães e os japoneses.
O que é relevante mencionar quanto à autonomia tecnológica e estratégica no Brasil? Ressalvada a modéstia de conquistas, os resultados obtidos no âmbito do Plano Básico de Ciência e Tecnologia do Exército/2005 — um vigoroso (para a época) programa de pesquisa & desenvolvimento — devem ser considerados exemplares. Pois bem, a equipe de pesquisadores do Exército, em cooperação com outros centros de pesquisa e universidades, bem como com a participação do segmento industrial nacional — nacional e de brasileiros, eu ressalto! —, logrou êxito em pesquisar, desenvolver e produzir pelo menos 6 sistemas bélicos que jamais foram obtidos ao Sul do Equador: radar para defesa antiaérea, simulador para treinamento de piloto de helicóptero, sistema de comando e controle, sistema de guerra eletrônica, viaturas tubulares sobre rodas com suspensão independente nas quatro rodas e sistema para emprego automático de metralhadora em viatura blindada. Convém enfatizar que todos estão em uso ou poderiam estar em uso no Exército. Essa amostra, pequena é bem verdade, comprova que o desenvolvimento autônomo é possível.
E um contra exemplo de nosso País? Tomemos uma referência industrial, alicerçada em evolução tecnológica: a indústria automobilística brasileira que é uma das seis maiores do mundo (pode ser a quinta, sétima ou oitava; isso é irrelevante). Entretanto, somos o único país dentre os 10 maiores produtores de automóvel que não possui uma empresa automobilística nacional, de propriedade de nacionais e com capital majoritariamente nacional. Por imperioso, esse segmento industrial pode ser considerado uma metáfora dos demais segmentos importantes para qualquer país. O impacto disso sobre a área militar é enorme. A quem recorrer para termos vetores de deslocamento nacionais? A solução: pagar a pesquisa & desenvolvimento para empresas estrangeiras que já produzem vetor similar. É nonsense em estado puro.
Por ocasião da concepção de nossa Estratégia Nacional de Defesa, tive a oportunidade de examinar as estratégias similares, britânica, francesa, chinesa e australiana. Na época, fui quase inconveniente, pleiteando que, do ponto de vista científico-tecnológico, fosse levado às mais altas instâncias militares a necessidade de intensa e pertinaz participação no processo. Curiosamente, tive no CTEx uma manhã com o Sr. Mangabeira Unger e cheguei a ser, ao lado de outros, cogitado para participar de algumas reuniões para tratar do tema — não foi possível! E eu aduziria que o setor de Ciência & Tecnologia militar terrestre teve uma participação menor do que poderia! Um indicador das consequências da END (ou EDN) foi o interesse das empresas estrangeiras do setor de defesa em atuar no Brasil e até mesmo em adquirir empresas brasileiras que, a duras penas e com apoio do Exército, pesquisaram e produziram alguma coisa. Essas multinacionais entenderam o recado algo como: “É a hora, venham que lhes acolhemos!”. Lamente-se similarmente a associação de empresas brasileiras do setor de construção civil com multinacionais estrangeiras do setor de defesa. As empresas brasileiras conseguem até construir mais no exterior e as estrangeiras mantém a supremacia e impedem a nossa autonomia. Nesse sentido, há companheiros que pregam com desassombro a associação como forma de aceleração do crescimento. Eu também posso defender a ideia, desde que haja uma participação paritária — o que é uma impossibilidade quando o insumo essencial é o conhecimento, pois prevalece quem o detém.

O que posso inferir do conteúdo dessas notas e informações? Não tenho a pretensão de transmitir conhecimento ou convencer sobre isso ou aquilo. Mas é inquestionável asseverar que no Brasil não há prioridade para o desenvolvimento científico-tecnológico, como de resto, não há prioridade para o processo educacional. Não há uma mentalidade de pregação da autonomia tecnológica e estratégica. Tudo que vem do exterior continua sendo bom. De um simples objeto doméstico a aeronaves e equipamentos militares, passando pelos serviços culturais como, por exemplo, a música e o cinema. Fala-se com ar de superioridade quando se tem acesso ao que vem do exterior. Penso que há uma enorme lacuna a ser preenchida em nosso País. É a ausência de pensadores e formadores de opinião concernentes aos interesses das Forças Armadas, alicerçados no campo científico-tecnológico. Então, estes garranchos com características panfletárias, sem preocupação com a estruturação e com o embasamento conceitual, podem servir de estímulo para que companheiros talentosos, com maior conhecimento e qualificação possam tratar apropriadamente da fundamental questão da autonomia tecnológica e estratégica de nosso País.

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Este texto foi elaborado com dados colhidos em fontes bibliográficas e obtidos em visitas a centros de pesquisa científico-tecnológica da África do Sul, China, Rússia e Reino Unido. Para um estudo mais cuidadoso e confirmação dos dados vale a pena consultar:
1. The nuclear express, de Thomas C. Reed e Danny B. Stillman, Zenith Press, 2009;
2. Defend the Realm – The authorized history of MI5, de Christopher Andrew, Borzoi Book, 2009;
3. The making of the atomic bomb, de Richard Rhodes, Simon & Schuster, edição revista de 2012;
4. Spying on the bomb, de Jeffrey T. Richelson, W. W. Norton & Company, 2007; e
5. Robert Oppenheimer – A life inside the center, de Ray Monk, Dobleday, 2012.