quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Pensar com liberdade, atuar com independência

Revendo meus garranchos, descobri um texto de fevereiro de 2013, que fora esquecido, mas que continua atual, especialmente, por ocasião da recente divulgação do relatório “As mentes científicas mais influentes do mundo, em 2015” (“The world’s most influential scientific minds, 2015”), no qual constatamos que apenas 3 brasileiros fazem parte do universo de 3000 cientistas que seus pares reconhecem como aqueles que têm efetiva importância na evolução da pesquisa científico-tecnológica global. Reproduzo o texto da forma como ele foi escrito em 2013.
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Pensar com liberdade, atuar com independência

A propósito do Polo de Ciência e Tecnologia do Exército em Guaratiba (PCTEG) — cuja  concepção foi incluída na agenda do Sistema do Sistema de C&T do Exército no período de 2012 e 2013, quando um companheiro de turma está à frente do Departamento de Ciência e Tecnologia — relato algumas reflexões que julgo relevantes.
Recentemente, para justificar o acordo com a Rússia, uma autoridade brasileira asseverou para a mídia que “o negócio relativo a equipamentos de defesa antiaérea está sendo feito com os russos porque eles concordam em transferir tecnologia.” Trata-se de um argumento já utilizado pelo Ministro da Defesa anterior para justificar outro bilionário negócio no ramo militar com os franceses.
Similarmente, em um encontro casual, ouvi de outra autoridade que “os engenheiros militares brasileiros não têm capacidade de assimilar a tecnologia militar estrangeira.”
A esse respeito, convém filtrar as duas assertivas com alguma racionalidade, e sob a ótica da história, ciência, tecnologia, estratégia e empreendimentos militares.
Rússia
No século XVIII, Pedro, herdeiro do trono russo, ao invés de ir para a Europa participar das reuniões da realeza nos palácios, preferiu trabalhar pesado em estaleiros holandeses. Ele objetivava construir a armada russa. Sua visão de estadista está estampada principalmente em São Petersburgo e Ecaterimburgo. Nesta, a 200 km do oeste da Sibéria — onde repousam os restos mortais dos Romanov, sacrificados pelos acólitos de Lenin, no início do século XX —, Pedro instalou  a primeira metalúrgica russa, com a finalidade de produzir de forma autóctone, também, armamentos militares. Diante da invasão alemã, no início da década de 1940, Stalin transferiu a maior parte do complexo industrial-militar de interesse do Exército para a região de Taguil (início da Sibéria), a 200 Km de Ecaterimburgo. Na exposição de produtos de defesa de Taguil — à qual, em 2008, compareceram militares brasileiros, integrando comitiva do CTEx, chefiada por oficial general, acompanhada pelo Adido do Exército naquele país —, não participavam empresas ocidentais. Apenas empresas russas e empresas de países da órbita de atuação da Rússia (Ucrânia, Bielorússia, Cazaquistão e outros). Nas cidades russas, circulam automóveis ocidentais; produtos ocidentais são encontrados para compra. Nas organizações militares russas, não há equipamentos militares ocidentais. Os exemplos históricos não permitem que os russos acreditem em transferência de tecnologia. Eles a perseguem, conquistam, dominam e assimilam. Quando possível, eles copiam, obtêm de forma não legal. Mas asseveram que a transferem para os compradores. O que eles não falam — até porque a maioria dos compradores não pergunta — é que o Pacote de Dados Técnicos completo (“TDP - Technological Data Package”), relativo ao produto, englobando o processo de pesquisa & desenvolvimento e o processo industrial completos, jamais será entregue.
França
Em face da invasão francesa pela Alemanha, no início da Segunda Guerra Mundial, os cientistas nucleares franceses se mudaram e ajudaram os americanos a pesquisar, desenvolver e produzir a bomba atômica. Quando De Gaulle, estimulado por promessa de Roosevelt, pediu ajuda recíproca a Truman, após o término da guerra, para P&D militar, o sucessor de Roosevelt disse que não havia acordo formal para isso. De Gaulle retirou todos os engenheiros militares e todas as organizações militares de Engenharia do Exército, da Marinha e da Aeronáutica e instituiu a DGA (Délégation General de l’Armement), uma quarta arma, com estatutos próprios. A DGA cumpriu o seu papel de inspiração, estímulo, fomento e/ou execução da P&D francesa autóctone nas áreas nuclear, naval, terrestre e aérea (aí incluídos: bomba atômica, submarino e porta-aviões nucleares, mísseis, carros de combate e aviões de caça). Em visita às linhas de montagem dos mísseis Exocet e Eryx, militares brasileiros — compondo, em 1996, comitiva de oficiais superiores do Exército — tiveram a oportunidade de constatar e confirmar aspectos essenciais da cultura militar e estratégica francesa. Os franceses sabem que não podem acreditar em transferência de tecnologia militar. Mas afirmam que a transferem para os compradores, sem clarificar que as tecnologias sensíveis (“core technology”) jamais serão transferidas.
China
A pólvora, a bússola e a imprensa foram inventadas pelos chineses alguns séculos antes de aparecerem na Europa. Por volta do século XV em diante, os chineses estiverem na vanguarda mundial, mas perderam essa condição a partir do século XVIII. No século passado, com Deng Chiao Ping, a China adotou o capitalismo de Estado e abriu a economia. Empresas estrangeiras que produzem bugigangas de $ 1,99 a automóvel — passando por quaisquer outras coisas, nesses dois extremos — tiveram autorização para se instalar na China. Nenhuma empresa do setor de defesa recebeu autorização similar. Os produtos de defesa das Forças Armadas chinesas são produzidos por empresas 100% chinesas (a maior parcela) ou são importados. Em visita ao Centro de Pesquisa de Tecnologia Eletrônica de Nanjing (onde trabalham 4000 engenheiros, sendo mais de 1000, com mestrado e doutorado; com cerca de 1000 radares com alcance de 5 Km a 500 Km, já produzidos; e cerca de 270 patentes de invenção), militares brasileiros — integrando, em 2010, comitiva do Ministério da Defesa, com 6 oficiais generais das três Forças — puderam certificar informações sobre a forma de atuação dos militares daquele País. Os chineses não acreditam em transferência de tecnologia. Sempre que podem, eles copiam, obtêm de forma não republicana; porém, declaram que transferem tecnologia para os compradores, sem explicitar que transferem apenas o que não é essencial.
Suécia
Quando considerados 6 indicadores (competitividade global, facilidade para empreender negócios, inovação global, percepção de corrupção, desenvolvimento humano e prosperidade) e cujas fontes são organizações acima de qualquer suspeita (Banco Mundial, Transparência Internacional, Organização da Propriedade Intelectual, Fórum Econômico Mundial e outras), a Suécia se classifica em primeiro lugar, à frente da Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suiça, Nova Zelândia, Cingapura, Estados Unidos, Holanda, Canadá, Hong Kong, Austrália, Reino Unido, Alemanha e Irlanda. Um Vice-Chefe do DCT, oriundo da nobre Infantaria, lá esteve e,  interessado em interpretar a conformação temperamental do povo visitado,  relatou o seguinte testemunho: “... gastei algumas horas para andar de metrô e constatei que 50% das pessoas viajam lendo um livro; 40% cochilam com um livro aberto no colo; e 10% contemplam as demais, com inveja do que elas estão fazendo!”. Ressalvado o exagero e a licença poética, a assertiva é uma metáfora justificadora do sucesso nórdico. Os suecos não acreditam em transferência de tecnologia; eles buscam-na. Contudo, sempre que podem, declaram que quem comprar deles, terá a tecnologia transferida. Claro, eles transferem a tecnologia de manutenção, de montagem e as demais tecnologias não essenciais.  
Inferências
Russos, chineses, franceses, suecos et al jamais entregarão o Pacote de Dados Técnicos  do produto, que englobe o processo de pesquisa & desenvolvimento e o processo industrial completos. Só a ingenuidade, percepção equivocada ou descompromisso com as futuras gerações possibilitam a crença de que isso é possível. Essa assertiva é forte, rigorosa, mas é verdadeira. Ela ampara outra afirmação inquestionável: só alcançam a prevalência os povos que dominam todo o ciclo de vida de seus artefatos bélicos. Trata-se de um conceito estratégico com validade desde os primeiros empregos da pedra como instrumento de defesa, passando pelo arco e flecha, pelo canhão, pelo avião, pelo míssil, pela bomba atômica; e continuará válido para as armas de energia dirigida, para as armas cibernéticas e para todas as demais.
Em síntese, ou adotamos firmes posição, atitude e estratégia de independência tecnológica, de maturidade enquanto sociedade e Nação, de instituição de um projeto nacional fundamentado na auto suficiência — podendo incluir parcerias internacionais onde haja inequívoca paridade ou vantagem na satisfação de interesses; ou nos candidatamos a prosseguir acreditando na cenoura da transferência de tecnologia — “não a cenoura que o coelho consome, mas aquela que alimenta outro orelhudo“, conforme a percepção de um insigne Chefe Militar, então Chefe do DCT, também oriundo da nobre Infantaria  —, ou nos candidatamos a prosseguir a reboque dos povos que optaram por ditar o rumo dos demais.

Nesse sentido, o Polo de Ciência e Tecnologia do Exército em Guaratiba — cujo embrião surgiu na década de 1970, por ocasião da instalação em Guaratiba do Centro Tecnológico do Exército, mercê do magnífico trabalho pioneiro do primeiro chefe daquele Centro, o General de Divisão Argus Fagundes O. Moreira — é uma iniciativa que satisfaz as possibilidades e anseios de construção de nossa autonomia científico-tecnológica e estratégica e pode contribuir para que andemos com as próprias pernas, pensemos com liberdade, atuemos com coragem e independência e prestemos conta com a posteridade sem temor de nos apequenar.

P. S. Em relação ao comentário de que "os engenheiros militares brasileiros não têm capacidade para assimilar a tecnologia militar estrangeira", deixei de analisar por se tratar de assertiva descomprometida com a verdade e fruto de irresponsabilidade intelectual ou má fé.